Para não viver em vão.

Ricardo Gondim.

Clint Eastwood produz e dirige filmes densos, especialmente os que lidam com o abuso de crianças. Gostei da trama de “A Troca” (“Changeling”), baseado em fatos reais. Um garoto desaparece enquanto a mãe, divorciada, trabalha algumas horas extras no sábado. Para encontrar o filho, Christine, personagem encenada por Angelina Jolie, precisa enfrentar sozinha a corrupta máquina policial de Los Angeles e ainda tem de manter o emprego, apesar da solidão e do desespero pelo sumiço do menino. O pastor presbiteriano Rev. Gustav Briegleb (John Malkovich), que lutava contra a violência policial, se une a Christine em sua luta contra a politização do Xerife que deveria cuidar da segurança pública. A militância de Briegleb é ética, corajosa e persistente. No final, enquanto projetavam as explicações finais sobre os desdobramentos do que aconteceu no filme, desabafei: “Quando crescer, quero ser igual a esse pastor”. O ministério de Briegleb desencadeou mudanças profundas nas leis da cidade. A obstinação de um homem salvou a vida de milhões de pessoas que ainda nem tinham nascido.Fui ordenado ao ministério em 1977. Desde então, trabalho com evangelização, missões urbanas e plantação de igrejas. Preguei milhares de sermões, participei de centenas de congressos, mesas-redondas e seminários. Comparo-me ao que Jesus disse aos primeiros discípulos: “Vocês não me escolheram, mas eu os escolhi para irem e darem fruto, fruto que permaneça” (Jo 15.16). Conto os anos de ministério, vejo que o meu futuro é mais curto que o passado e me pergunto: “Qual a pertinência do meu esforço? O fruto do meu ministério permanecerá?”.Não pretendo terminar os dias desempenhando as funções sacerdotais como mero sacerdote que batiza, celebra ritos de passagem e enterra os mortos. Não almejo acomodar-me à função de xamã. Não tolero o papel de “baby-sitter” de crentes burgueses, sempre ávidos por bênçãos.É possível encontrar muitos cristãos em movimentos populares que reivindicam reforma agrária. Porém os pastores, com certeza ocupados com a máquina religiosa, não dispõem de tempo para se aliarem aos oprimidos pela burocracia estatal, que perpetua a injustiça. Poucos se atrevem a sair do conforto das catedrais para defender o meio ambiente. Como pastor pentecostal, inquieto-me com o massacre da teologia da prosperidade, que ocupa a maior parte do culto com promessas de bênção. Não gosto de ver a instrumentalização de quase todo esforço missionário para fazer proselitismo, em nome de uma evangelização. Pastores semelhantes a mim vivem a responder a questiúnculas sobre doutrina, a legislar sobre moralismos e a apagar fogo de contendas entre os membros de suas comunidades. O discipulado desaparece na catequese que tenta adequar as pessoas às demandas religiosas. O resultado é trágico e o testemunho cristão, pífio.Por todos os lados pipocam sinais de que os evangélicos começam a repensar a teologia fundamentalista que lhes serviu de suporte. Agora urge fazer o dever de casa com a eclesiologia. O significado de ser igreja em áreas cosmopolitas tem de ser mais bem avaliado. Os paradigmas atuais sufocam o surgimento entre os evangélicos de gente como Martin Luther King ou Dorothy Stang.Caso não mexamos com os conceitos fundamentais da teologia da missão, continuaremos repetindo fórmulas desgastadas. Resgatar pessoas do inferno, garantir o céu, mas esquecer a “plenitude da vida” diminui brutalmente o mandato cristão. O tempo gasto das pessoas, os recursos financeiros aplicados, a mobilização de talentos, não podem ser desperdiçados. A função da igreja é também resgatar vidas, proteger os indefesos da burocracia estatal, da opressão do mercado e até da frieza eclesiástica. Como cuidei basicamente de igrejas urbanas, lamento o tempo perdido com a máquina religiosa. Fui absorvido por programações irrelevantes. Defendi teologias desconexas da existência. Fiz promessas irreais. Discuti ideias estéreis. Corri em busca de glórias diminutas. O tempo é uma riqueza não renovável, portanto, resta-me lamentar tanto esforço para tão pouco resultado. Entreguei-me de corpo e alma à oração, fiz vigílias, jejuei. Ralei os joelhos em busca de uma espiritualidade eficiente. Acreditei piamente que a maturidade humana aconteceria pelo caminho da piedade religiosa. Ledo engano. Muitos companheiros de oração se levantaram ferozmente contra mim. O mundo passa por mudanças radicais e as igrejas, se quiserem ser relevantes, precisam repensar seu papel na sociedade. Se não quiserem sucumbir à tentação de serem meros prestadores de serviços religiosos, os pastores precisam abrir mão de egolatrias tolas como o fascínio por títulos. É tolice brincar de importante usando o nome de Deus. O descrédito do cristianismo ocidental se tornou agudo nos últimos 20 anos. Urge que os pastores revejam os seus sermões e se questionem se pregam conceitos relevantes em uma sociedade profundamente injusta, cruel e opressiva. Não fazer nada custará muito à próxima geração. Mais jovens se fatigarão prematuramente. E os idosos morrerão com o gosto amargo de terem gastado a vida em vão. O que seria muito triste.


“Soli Deo Gloria”.


• Ricardo Gondim é pastor da Assembleia de Deus Betesda no Brasil e mora em São Paulo. É autor de, entre outros, Eu Creio, mas Tenho Dúvidas. http://www.ricardogondim.com.br/




O mais importante é a igreja.


Robinson Cavalcanti.

A Igreja é o que de mais importante existe no mundo. Criada pela vontade de Cristo, ela é a agência da salvação, ensaio e vanguarda da nova humanidade. Deus havia chamado Israel (obediente “versus” desobediente), e no passado nos falou pelos profetas, guardiões da lei. A função e o “status” de Israel -- a antiga aliança -- cessaram quando o véu do templo se rasgou. Hoje o judaísmo e o islamismo são apenas religiões semíticas monoteístas. A Igreja é o novo Israel, a nova aliança, e, como nos ensina Pedro, herdeira dos títulos e atributos do primeiro Israel: geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de Deus. Entre o antigo e o atual Estado secular de Israel (formado por 90% de ateus e agnósticos) só há em comum a geografia e as mirabolantes teorias de alguns protestantes. Os judeus (e todos os povos) devem ser enxertados no novo povo, porque não há salvação em nenhum outro nome senão o de Jesus.A crise da Igreja é resultado da sua baixa autoestima, da falta de autocompreensão e conhecimento não somente sobre sua missão, mas também sobre sua natureza e organização -- uma crise de identidade em razão de uma ruptura com sua história, suas raízes. Como povo-instituição de Deus, a Igreja é mais importante do que a família biológica ou adotiva, do que o mundo do trabalho e do lazer, do que o Estado ou qualquer expressão da sociedade civil. Ela é portadora única do sentido para as demais coisas -- o evangelho e o poder do Espírito Santo -- e é nela onde se convive não somente para o tempo, mas para a eternidade. A Igreja não é apenas suas expressões localizadas: as comunidades locais, as tabas religiosas com seus caciques ou as casas de shows para expressão das fogueiras da vaidade. A igreja vive hoje em pecado porque desobedece aos dois princípios basilares a ela destinados pelo seu fundador e Senhor: a unidade e a verdade. O cisma (divisão do corpo) deixou de ser considerado um grave pecado pelo desordenado denominacionalismo; a heresia deixou de ser considerado um grave pecado pela crescente e ilimitada “diversidade” e “inclusividade”. Os cismas são heresias, e as heresias são cismas. Essa tragédia se transformou em rotina ante a indiferença de todos.“Denominação” é uma palavra que não se encontra nas Sagradas Escrituras nem na obra de nenhum autor relevante da história do pensamento cristão antes do século 18. Não é um termo teológico, eclesiológico, mas apenas sociológico, administrativo, jurídico, humano, corrente nos últimos duzentos anos a partir da realidade da “livre empresa” e do “‘self-service’ religioso” norte-americano. Quando a Igreja una, santa, católica, apostólica e reformada dá lugar a uma miríade de “denominações” ou “ministérios”, o evangelho é parcializado, a missão é mutilada e vivemos na carne, por mais piedoso e espiritualizado que seja o nosso discurso. Afirmar que “Deus me mandou criar um novo ministério” é uma blasfêmia.A Reforma Protestante foi um dos capítulos mais importantes da história da Igreja, mas o seu desdobramento em correntes extremadas fez com que o bebê fosse jogado fora junto com a água do banho. Ela preocupou-se com a autoridade (das Escrituras) e com a salvação (pela graça mediante a fé em Jesus) e se descuidou da eclesiologia, do estudo da própria Igreja. A instituição que deveria garantir a preservação dessas verdades logo foi atropelada pelo racionalismo liberal ou pelo literalismo fundamentalista. O livre exame, de livre acesso e investigação, deu lugar à livre conclusão. Ao contrário da criação, a Igreja se tornou sem forma e vazia. A releitura das Escrituras pela burguesia europeia, 1600 anos depois, fez os congregacionais tomarem o embrião e os presbiterianos tomarem o feto como se já fosse o ser nascido (institucionalizado) -- fato que a história atesta ter acontecido (muito cedo) somente com a consolidação do episcopado. Por sua vez, a pretensão da Igreja de Roma (e de alguns ramos da ortodoxia oriental) de ser “a” Igreja, em uma visão monocêntrica da história, não faz justiça à verdade policêntrica das sés e dos patriarcados deixados pelos apóstolos em diversas regiões. Foi no Oriente que viveu a maioria dos Pais da Igreja e onde aconteceram todos os Concílios da Igreja indivisa (responsáveis pelo consenso dos fiéis); ainda assim, 1.200 anos de história da Igreja no Oriente (períodos bizantino, pré-calcedônio, pré-efesiano ou uniata) representam apenas algumas notas de rodapé ou algumas linhas nas obras dos historiadores católicos romanos ou protestantes (“anabatistizados”). Ficamos vulneráveis com essa lacuna, em uma época de desprezo pelo passado e de arrogância individualista e imediatista. A universalidade da Igreja, com a multiforme manifestação da graça de Deus em todo o mundo, é mutilada pela hipervalorização (quase exclusiva) do que nos vem do império do momento. Como foi mesmo a definição do cânon bíblico, das doutrinas dos credos, dos sacramentos e do governo episcopal?


• Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política -- teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo -- desafios a uma fé engajada.http://www.dar.org.br/